26 de mar. de 2009

Conto a um amigo

Uma música estranha estava no ar. O volume era baixo. Também a qualidade. Estranha. Parecia familiar e conhecida há muitos anos. O movimento vertical se deteve e de repente em minha cabeça a canção se tornou viva e o volume, alto - perfeita e familiar. Dois blocos de metal se separaram diante de mim. A porta se abriu junto a um apito incômodo porém suave. Entre pedidos de licenças e desculpas eu saio daquele cubículo terrivelmente pequeno, apertado e abafado com um cheiro de morte. Não de podridão, mas de morte.
Me encontro no meio de um corredor, com os sentidos aturdidos pela estranha atmosfera que me envolvia... Vejo uma mesa e uma mulher sentada atrás dela, vestida de azul (não sei porque pensei que ia ser de branco) com o cabelo amarrado para trás colocando em evidencia seu rosto não muito bonito e seus lábios com um batom vermelho exagerado. Cadê o bom gosto? A maquiagem deixa a mulher tão feia, desnatural... estranha. Espero ela desligar o telefone: "Oi, tô procurando o quarto 124... Onde é?"
- No fundo do corredor à direita.
- Obrigado.
Dou um leve sorriso e me ponho a caminho na direção que ela me deu. Chego em frente à porta e abro-a batendo duas vezes de leve.

"Entra" disse a voz lá de dentro, um pouco fraca. Era uma voz familiar, gostosa e calorosa. Sei que a voz, o som, não tem essas propriedades em si... mas era como me fazia sentir. As atmosferas se misturam. Morte e afeto.
Que combinação estranha...

"Aron?" perguntou a voz... "Eu" andei o pequeno corredor que dava à cama e vi meu querido amigo deitado ali. Pálido, magro e com olheiras enormes... Porém não consegui deixar de sorrir ao vê-lo. Ele também sorriu ao me ver. Até ganhou um pouco de cor... o que me deixou mais contente, também. Ele desceu um pouco os lençóis e abriu os braços para me receber, querendo um abraço. Abraço-o fortemente... Sinto seu coração perto do meu. Por um momento se tocam. É Bom. Sinto vida nele. Meu sorriso agora é imenso... Estranho.
Ele está sozinho. Ué, cadê a família dele? Os irmãos? Mãe? Pai? Amigos?.. Namorada?
Eles poderiam ter estado aqui ontem... Porque me importa isso? Ele percebe meu olhar perdido ao quarto e com isso os meus pensamentos também. Ele sorri lentamente, talvez porque ainda me conheça... mas não diz nada.

Busco uma cadeira e me sento ao seu lado. Ele levanta a parte de cima da cama com um controle remoto. Cansado. Mas faz um esforço pra conversar comigo... Me sinto lisonjeado. Honrado até.

- E aí... Quê cê me conta?
- Putz... Nada.
- Como assim nada? Conta algo!
- Ah... Tá tudo bem... Terminei o namoro faz pouco... Minha mãe vai se mudar... Meu irmão se mudou, tá com uma casa nova... Meu outro irmão tá ainda em Londres... Meu pai e minha madrasta acho que tão bem... Tá tudo bem.

Sorri um sorriso bondoso, imagino eu.
Ele sorriu de volta, com uma expressão de compreensão... e diversão. Se aproximou um pouco de mim, levantando-se ligeiramente de sua cama.

- Amigo... Sabe o quanto eu senti sua falta? Muita. Muita mesmo...

Ele se encostou na cama e até deitou um pouco a parte superior dela com o controle.
Fiquei pensativo um pouco. Ele fechou os olhos e respirava lentamente... Eu olhava pra ele com uma admiração profunda, porém incompreendida.

- Quero saber de Você, Aron. Me conta...

De novo, me sinto lisonjeado... Pensei. Não conseguia olhar pra ele. Ou para qualquer lugar. Minha mirada estava perdida. Quis encontrar o que contar, sem todas essas coisas superficiais, mas não consegui. Me odeio por isso. Queria me encontrar e falar tudo, como antes. Mas nada vinha. Meu amigo, me perdoe.

- É difícil, eu sei. Queria saber de você. Como antes. Era bom. E você sempre tinha uma facilidade incrível pra essas coisas... Queria escutar novamente alguém se abrir pra mim. Eu admiro muito isso em você. Todos os dias as pessoas entram nesse quarto, com toda a pena do mundo e me perguntam como eu estou. Me pedem para que conte algo. Mas não consigo. Eu sei como você se sente... Eu olho pro mesmo ponto vazio que você. É triste. Queria escutar um pouco de felicidade. De verdade. Você entrou aqui e não me perguntou nada. Não sei se não te interesso o suficiente ou se você consegue ler meus olhos, assim como leio os teus. Mas você não me olhou com pena... Então vou acreditar na segunda opção. Ninguém consegue me dizer nada. Pergunto pras pessoas alguma coisa, qualquer coisa, e elas respondem com uma voz estranha, de pena, com falsa bondade. É muito estranho... E só me dizem coisas do tipo que você acabou de me dizer. É tão podre. Queria conhecer mais essas pessoas que amo tanto... mas tenho que me contentar com os olhares. O carinho, o afeto... os abraços. Não que seja ruim... Amo isso, você sabe. Mas eu queria mais. Preciso de mais.

Tão estranho alguém ser tão aberto com você desse jeito. Com essas palavras. Que coisa... Não resta nada a não ser escutar. É gostoso... e dá medo.

Destruo toda a fortaleza que construi nos últimos meses para me fazer uma pessoa "forte".

- Tá bom... Te conto.

Seu rosto se acendeu. Seus olhos se abriram e suas bochechas subiram com a abertura de um sorriso.



Era noite e me sentei em um banquinho de cimento, debaixo de uma árvore, a três quadras dali. Quando sai do quarto ele já dormia. Eu também adormeci... Todavia estou meio lerdo.
Penso nele. Na família dele. Nos amigos. Na namorada dele. Penso neles porque me sentia culpado de me sentir feliz em um momento desses. A culpa tinha que ser transferida... mas ele a dissolveu. E a "força" que se precisa para viver nesse "mundo duro e cruel"... é tão ridícula. Penso se aquela música foi coincidência. Se tudo o que me aconteceu nos últimos meses foram apenas um pano de fundo para o que aconteceu agora. É tudo tão bem construído que me assusta. É tudo tão estranho... "Rebirth" em um hospital é sacanagem. Hahahahaha.

A árvore me escutou, e porque não, o banquinho também... Se você quer saber, acho que eles riram juntos comigo.

E é verdade. Nunca senti pena por ele. Mas sei que vou sentir sua falta.
e seremos só boas memórias...
Um eco caloroso..
Só saudade.