... Pois a natureza do homem é má." disse o pastor. "Vocês, caros fiéis, vocês tem que ser bons." Mal o pastor terminou de dizer essas palavras uma voz soou lá do fundo da igreja (diz-se igreja, pois na verdade era um velho cinema.)
- Desculpa! Mas... por quê?
O pastor, incrédulo, tremeu um pouco e até balbuciou por uns segundos e logo disfarçou, como todo bom ser humano treinado na arte da política.
- c-Como assim porque? O senhor aí no fundo, está a duvidar das palavras do Senhor?
- Estou a perguntar sobre as suas palavras senhor. Nunca li a bíblia.
- As minhas palavras são as do Senhor.
- Não seria as palavras Dele são as tuas?
O pastor olhou para os outros na platéia (como era um velho cinema, posso usar essa palavra.) e se sentiu um pouco constrangido.
- O senhor poderia vir aqui na frente para que todos pudessem te ver?
A voz do fundo era, para a surpresa de todos, de um jovem. Era baixinho, de cabelo curto e com pintas na cara. Ele subiu no palco e ali ficou, encarando com calma ao pastor.
"Ora essa! É um menino!" Pensou o pastor, aliviado por imaginar que agora iria destruir o seu oponente.
- Aqui estou. - disse o jovem.
- A sua pergunta era qual, meu jovem?
- Por que, se somos mal por natureza, temos que ser bons?
- Porque fomos corrompidos por Satanás. E é nosso dever sagrado lutar contra essa mácula.
"Amém Senhor" e outras coisas foram pronunciadas pela platéia.
- Mas, eu escutei dizer que, quando Jesus morreu na cruz, ele limpou essa mácula. Morreu por nossos pecados. Não?
- Sim... Mas não é bem assim.
- E como é?
Sentindo-se encurralado, o pastor logo olhou para uma pessoa ali atrás de uma cortina e fez um gesto com a cabeça. Rapidamente o pastor voltou-se ao público e disse: "Oremos!" e ao mesmo tempo aquela pessoa a passos rápidos se aproximou ao jovem e pediu que o acompanhe. O jovem que não tinha intenção de nada, apenas uma dúvida, acompanhou a pessoa ao outro lado da cortina.
Os fiéis oraram, choraram e louvaram a esse deus estranho que o jovem nada sabia. O jovem olhava tudo aquilo com curiosidade. Olhou para o lado e viu a velha tela de cinema. Se perguntou quantos filmes foram projetados ali... E vendo aquele espetáculo acontecer em sua frente, riu como se visse uma criança cair no chão ao tentar dar seus primeiro passos - nada cruel, apenas cheio de graça.
- Então você é um ateu. - Disse o pastor, desajeitando a gravata e o paletó. O jovem havia sido conduzido ao escritório do pastor, e ficou ali sentado, olhando aos movéis finos e todos os adornos luxuosos até o pastor chegar.
- Ateu? Não senhor. Não sou um ateu.
- Então o que você é?
- Eu sou eu. Não me considero religioso, nem ateu, nem agnóstico, nem nada.
- Então como me posiciono frente a você?
- Posicionar? Como assim?
- É. Como eu me dirijo a você? Se você não tem nenhuma crença mas também não deixa de ter.
- Bom... Você pode tentar me tratar como uma pessoa comum. Como você mesmo.
- Comum são os que estavam lá fora. Eu sou algo mais. Falo pelo Senhor.
- E é a vontade do Senhor que fez que você tivesse todos esses móveis e adornos? O seu fino paletó?
- Obviamente.
- Você não responde a ninguém a não ser o seu Senhor?
- A ninguém.
- Nem mesmo a gerência da Igreja?
- Bom... Sim, mas... Como você...?
- Senhor Gustavo... - Nesse momento o pastor congelou por dentro. Tinha tanto medo do seu próprio nome como os fiéis lá fora o inferno. O jovem percebeu a reação que o pastor quase conseguiu ocultar, e sorriu. - ... quanto a sua igreja ganhou este mês?
Gustavo tremia. Ele se esbaldou tanto da própria confiança, assim como um fiel de que é uma pessoa boa e decente, que achou que isso nunca iria acontecer.
- Por que eu tenho de responder isso a você?
- Meu nome é Paulo Pedroso Filho.
- Filho do próprio Paulo P..?
- Isso mesmo. E estamos muito descontentes com você, não por roubar dos pobres, mas por não dar aos ricos. Você tem um mês pra cobrir tudo o que você deve a nós, a Sua igreja, e Sua verdadeira senhoria.
O jovem se levantou da cadeira. Gustavo não disse uma palavra, temendo por sua própria vida.
- E da próxima vez que um jovem levantar a voz contra você, acuse-o diretamente e não o deixe falar. Você não tem que explicar nada a ninguém.
Paulo andou até a porta e prestes a sair, se voltou a Gustavo.
- Sabe, eu me pergunto como você durou tanto nessa profissão. Pelo menos você sabe quando calar a boca.
No outro domingo, o tema foi caridade, bondade e benção nos céus. Enquanto o ajudante passava colhendo as doações o pastor falava com muita vontade e convicção sobre quando Jesus compartiu o pão entre uma multidão.
Durante boa parte da leitura eu imaginei o pastor como um personagem na tela do cinema antigo, conversando com o menino da plateia.
ResponderExcluirAté o fim eu gostei de manter a imagem mais de cinema do que da igreja, como se o cinema também dispusesse de artifícios que prendem seus fiéis enquanto os bolsos das cartolas transbordam.